quarta-feira, 8 de abril de 2009

Desarticulação e tolerância

Por Kemel Amin B. Kalif *

Fonte: Agência Estado em 23/07/2003

As cabeças socioambientais de outrora, se hoje não fazem parte do governo, integram fóruns consultivos ou têm se mostrado pré-dispostas a ceder ao carisma governamental. E, assim, elevam os níveis de tolerância, na espera por mudanças.

Em julho do ano passado, próximo às eleições presidenciais, as pesquisas já apontavam para a vitória de Lula. Em meio a um dos infinitos debates sobre o tema, em mesa de bar, a seguinte frase, proferida por um amigo, assumiu um tom profético: "Se o Lula ganhar, vai levar para o governo várias pessoas que são "chave" para o movimento socioambiental brasileiro. E, isso vai acabar desestruturando os movimentos da sociedade civil organizada e os espaços que foram conquistados".

O autor da frase referia-se ao movimento ambientalista brasileiro, o qual, em sua trajetória, construiu uma relação umbilical com o partido, que estava na iminência de assumir o poder. E reforçou seu ponto de vista, enumerando amigos e conhecidos, nomes de destaque de organizações não governamentais (Ongs), que trabalhavam paralelamente para "quebrar o ciclo", e que, provavelmente, deixariam de ter e-mails "ponto org" para ter e-mails "ponto gov". Uma conquista. Com a histórica eleição de um presidente sensível aos problemas e desafios socioambientais do Brasil, um novo horizonte, com possibilidades ilimitadas de conquistas, era vislumbrado. Chegara o momento de realmente traçar o futuro de regiões como a Amazônia, onde um histórico de políticas desenvolvimentistas equivocadas municiou Ongs com toda espécie de críticas e propostas, a maioria delas, legítimas.

Mas o que apontava para uma maior abertura à sociedade civil pode estar, na verdade, transformando-se na unificação do discurso socioambiental brasileiro, no momento em que a sociedade deve exercer sua capacidade crítica e seu poder de influência - construído no decorrer dos anos - para conduzir decisões estratégicas para a nação. Em outras palavras, o cenário atual revela indícios de efeitos colaterais, nesta proximidade da sociedade civil organizada com o governo. Isso se refere ao futuro incerto - e não há metáfora aqui - de toda a Amazônia brasileira, com seus 20 milhões de habitantes e, em especial, das cerca de seis milhões de pessoas que compõem as populações rurais marginalizadas, quilombolas, povos indígenas e tradicionais da região.

Tal futuro incerto é o grande viés socioambiental do Programa Nacional de Florestas (PNF), do Ministério do Meio Ambiente. O programa foi iniciado na era Fernando Henrique Cardoso, prevendo a criação de 50 milhões de hectares de Florestas Nacionais (Flonas), até o ano de 2010, e exploração madeireira na metade desta área por meio de concessões florestais. Apesar de não haver evidências de que concessões florestais tenham dado certo no Brasil, pretende-se estabelecer, em larga escala, algo que ainda deveria ser experimental. Existem, aliás, evidências de resultados negativos, em outros países, e, mesmo assim, o governo atual pretende dar prosseguimento ao PNF de FHC. E o mais estranho é uma certa dominância no discurso pró-flona, portanto, pró-governamental, entre atores do movimento socioambiental brasileiro.

A unificação do discurso representa o maior indício de que um processo perigoso pode estar acontecendo no Brasil: a consolidação de uma estrutura de dominação carismática. O poder carismático de um Estado, influenciando aceitações e ações sociais, não pode ser subestimado. Indo além: a dimensão deste carisma na realidade do Brasil de hoje é infinitamente maior do que no Brasil pré-2003, quando o líder da nação não representava o próprio estereótipo das lutas sociais.

As questões sociais não podem ser desmembradas das lutas ambientais e os articuladores ambientais sempre se identificaram com o discurso social daquele - antes "quase", agora "de fato" - líder da nação. Consolidou-se, então, um comprometimento histórico e as cabeças socioambientais de outrora, se não fazem parte do governo de hoje, integram fóruns consultivos ou, no mínimo, têm uma pré-disposição para ceder ao carisma governamental. Este processo eleva os níveis de tolerância, na espera por mudanças, e torna-se fácil aceitar argumentos como "estamos arrumando a casa" ou "o problema é do governo passado".

O PNF, novamente, é o exemplo cabal: além de ser composto por pessoas, que tiveram papel importante enquanto sociedade civil, acabou criando espaços de consulta à sociedade, hoje tomados por partidários carismáticos e tolerantes. Os espaços de consulta se transformaram em referendos legitimistas. Não há diferença entre decidir sem consultar ou consultar apenas a quem concorda. Em outras palavras, decisões importantes estão sendo tomadas, repetindo o erro do passado: ausência de uma consulta representativa a movimentos socioambientais.

Sem dúvida, seria salutar encaminhar questões polêmicas sobre o meio ambiente, sem os entraves de oposições irresponsáveis. Mas um corpo consultivo uníssono, por outro lado, só pode representar a si mesmo e não toda uma região complexa, com inúmeros conflitos de interesse, como é a Amazônia.