sábado, 1 de março de 2014

Um samba sustentável para os europeus (Artigo publicado no Estadão Noite - 28/02/2014)

Esta semana a Amazônia desfilou pelo sambódromo da economia mundial. Desta vez foi representada pela Zona Franca de Manaus, cujo regime tributário diferenciado foi objeto de consulta realizada pela União Europeia a Organização Mundial do Comércio. A estratégia da Presidente Dilma foi de apelar para o enredo do Desenvolvimento Sustentável na sua resposta, com repiques de estranheza acerca da consulta. Poderia ter sido uma estratégia até que inteligente, afinal, o mercado formado pelo bloco da União Europeia é, reconhecidamente, o que mais preza por valores de sustentabilidade.

Mas parece que a letra desse samba ficou um pouco confusa no vocal da Dilma.

Num discurso, a Zona Franca de Manaus foi apresentada pela Presidente como responsável pelo "Desenvolvimento Sustentável" do Brasil e, na medida em que cria empregos e movimenta a economia da região, "contribui para evitar o desmatamento da Floresta Amazônica". O samba ganhou também o vocal do Senador Eduardo Braga do PMDB do Amazonas, que passou a enumerar os 115 mil empregos diretos e outros 400 mil indiretos proporcionados pelas 600 empresas no polo de Manaus. 

A Zona Franca tem, de fato, um importante papel na economia da região, com reflexos no Brasil, mas o que tem a ver com o tal do desenvolvimento sustentável? O fato de o Estado do Amazonas apresentar, historicamente, menores taxas de desmatamento que outros estados amazônicos, como o Pará, está muito mais relacionado a uma “proteção passiva” do que à existência da Zona Franca. 

A proteção passiva das florestas da porção oeste da Região Amazônica é representada pela dificuldade de acesso e escoamento da produção, o que encarece e desmotiva o estabelecimento de atividades agropecuárias – tradicionalmente relacionadas ao desmatamento. 

Além disso, poucas estradas significa menor especulação de terras, o que é diferente do ocorrido no Pará com a chegada da Belém-Brasília, com a abertura da Transamazônica e, mais recentemente, com a BR-163. Portanto, a grande ironia, neste caso, é que o Estado do Amazonas foi preservado como reflexo das próprias omissões estatais: aquela estrada prometida pelo governo tal, mas que não saiu do superfaturado canteiro de obras!

Outro ponto que chama atenção no samba da Dilma é o absoluto conflito exposto em sua afirmação perante a União Europeia. Na medida em que o regime tributário diferenciado aplicado na Zona Franca foi defendido como responsável pela geração de emprego e renda, e que tal geração tornaria desnecessário desmatar, o governo admite, no mínimo, que o desmatamento ocorre por falta de emprego e renda. De outra forma, significaria dizer que, fora da Zona Franca, os péssimos índices da economia brasileira obrigam as pessoas a desmatarem para sobreviver. Não é verdade, a relação é exatamente inversa: o desmatamento aumenta em períodos de aquecimento da economia, e também porque é preciso de dinheiro mesmo que para “apenas” desmatar. Outro verso deste samba, neste caso presente em suas entrelinhas, é a admissão, por parte do governo federal, de que a carga tributária brasileira é o principal entrave para criação de emprego e renda, e que o desmatamento é a forma de compensar o que o Estado arranca do contribuinte da floresta amazônica.

No final de tudo, o samba da Dilma disse muitas coisas, menos o que queria, ou deveria, dizer. Mas quem sabe o corpo de jurados da União Europeia, quando da avaliação do samba-enredo do governo brasileiro, não dê uma boa nota: nota 10 para o quesito “samba do crioulo doido”.

Kemel Kalif