quinta-feira, 21 de julho de 2011

Sou um carro a menos, até quando?

Em São Paulo, vivemos os efeitos colaterais de anos de insistência em uma falsa modernidade. Ficamos estagnados num American Dream, que nem mesmo americanos sonham mais. Somos uma cópia bizarra de uma Nova Iorque oitentista, e elegemos governantes pelos quilômetros de asfalto, elevados e túneis construídos.

Na modernidade oitentista, o ápice do consumo, o bem de maior desejo, a certificação de sua posição na pirâmide social, ainda é o carro. Aqui o carro ainda fala por você, ele informa o seu maior ou menor sucesso financeiro, e se nem um carro popular você consegue comprar – bem, aí você deve estar em algum lugar da base da pirâmide.

Logicamente, é dentro desta cultura que os governos constroem suas macro visões de planejamento urbano. Embora criar restrições para carros de passeio seja a forma mais eficaz de evitar que a cidade pare num congestionamento, os governos preferem restringir caminhões, ônibus, e construir 2 ou 3 viadutos como paliativo, garantindo, quem sabe, uma reeleição.

Então vêm as campanhas de conscientização no trânsito... A mais recente é, ao pé da letra, uma tragicomédia. Artistas contratados pela prefeitura de São Paulo satirizam as atitudes dos pedestres nos semáforos de maior movimento (cômico), e para o motorista, assistindo a tudo do camarote do seu blindado, fica a mensagem subliminar: Fora da faixa? Passe por cima! (trágico).

E se está ruim para o pedestre, imagine para o ciclista. Onde cabe o ciclista nesse turbilhão de automóveis e nesse vai e vem de pernas? Nas ruas, motoqueiros suicidas e motoristas estressados; nas calçadas, pedestres espremidos, aos tropeços...

A visão do poder público por aqui é a seguinte: bicicleta não é meio de transporte, e sim um aparelho de ginástica que, por um acaso, não fica preso no chão. Então aproveitaram uma estrutura já existente e criaram a ciclovia da Marginal Pinheiros, com apenas dois acessos. Portanto, para aqueles que se revoltam com ciclistas no meio dos carros na Marginal, achando que deveriam estar na ciclovia, aqui vai a informação: um acesso está distante cerca de 15 km do outro.

A novidade comemorada pela Prefeitura de São Paulo é a tal da ciclorota compartilhada. Por coincidência, também são 15 km de percurso – será algo cabalístico? – onde carros estão limitados a 30km/h e onde a sinalização indica que devem compartilhar o espaço com ciclistas. A tal ciclorota é algo permanente, ao contrário daquelas ciclofaixas que funcionam somente algumas horas aos domingos.

Trata-se de um avanço na Nova Iorque tupiniquim... Parece ser um embrionário reconhecimento da bicicleta, não apenas como forma de lazer, mas como meio de transporte. É embrionária, pois, embora tente integrar carros e bicicletas 24 horas, ainda assume conotação de mero lazer na medida em que não liga uma região residencial ao centro comercial. Trata-se, da mesma forma que o fiasco da Marginal Pinheiros, mais um aproveitamento, um improviso de gestão e planejamento, e ainda um desserviço: - Fora da ciclorota? Passe por cima!

De outra forma, o debate em torno desta ciclorota me fez pensar em outra coisa... Na medida em que o Código Nacional de Trânsito comporta, lado-a-lado, carros, motos e bicicletas, com regras bem definidas sobre distância entre estes, não seriam as vias urbanas, por natureza, compartilhadas? Isso significaria dizer que São Paulo acaba de criar os seus primeiros 15 km de via pública onde as leis de trânsito funcionarão!

Mais do que ciclo(vias, rotas ou faixas), o imperativo é a mudança da mentalidade na Nova Iorque oitentista. Isso porque a cultura do carro é tão fortemente arraigada na mente paulistana que até pedestres, de lá das calçadas, reprovam a ousadia da bicicleta que segue entre os carros. Mas evitar as calçadas foi exatamente a opção para respeitar o pedestre!

Já dos motoristas a reprovação vem na forma de xingamentos, buzinas insistentes, aceleradas estridentes, trancadas, “chega-pra-lás”, e até a proposital ultrapassagem a pouquíssimos centímetros de distância, muitas vezes em velocidades mortais.

Para estes, quando posso, retruco: eu poderia ser um carro a mais dentro do “seu” engarrafamento. Poderia estar exatamente bloqueando a sua frente...

Mas não, eu sou um ciclista, e na medida que sou um carro a menos acabo por beneficiar, especialmente, meus próprios algozes: os carros de passeio.

Por enquanto ainda tenho forças para continuar nesta luta inglória. Mas já tenho claudicado bastante. Quero continuar deixando meu carro na garagem, quero continuar sendo um carro a menos, mas não quero ser uma vida a menos no trânsito.

Kemel Amin B. Kalif: Agrônomo que não sabe plantar batata, mestre em zoologia/ecologia que não é biólogo, doutor em desenvolvimento sustentável onde se tornou esquizofrênico de uma vez por todas, pós-doutor em economia ecológica e rabugento de nascença.