sábado, 30 de agosto de 2014

A minha e a tua opção responsável de voto.



Outro dia um fictício alguém disse para o amigo, num ônibus lotado, que para votar de forma consciente, responsável, tem que escolher bem o candidato.

O amigo - um personagem que criei para um concurso de contos uns tempos atrás - ficou pensando: Como se escolhe bem um candidato? O que é considerado escolher bem?

O nome desse cara era Marca-passo, não por possuir um, mas por sua obsessão em quantificar as coisas, em torná-las parâmetros palpáveis, em tentar ler, objetivamente, o mais subjetivo dos assuntos. 

Embora esse cara nunca tenha participado de algum conto lido por mais de dez pessoas, gosto de como ele foi construído. Mas isso é outro assunto... Tenhamos, para esse diálogo, um fictício alguém e ele, o reducionista Marca-passo, também fictício porém vivo, ao menos num arquivo de computador com mais de 20 anos de idade.

Antes que Marca-passo pudesse falar, seu fictício interlocutor completou: - Para escolher bem qualquer coisa é preciso conhecer bem esta coisa!

Ok, faz sentido, pensou Marca-passo... Mas a explicação gerava outra dúvida, a qual ele externou após um aceno positivo com a cabeça: 

- Mas qual o nível de conhecimento que pode ser considerado suficiente para uma boa escolha?

- Você tem que se informar, conhecer bem seu candidato - Respondeu, enfático, o interlocutor.

- Mas como podemos conhecer bem uma pessoa se nem os familiares a conhecem bem?- Devolveu, Marca-passo.

- Você tem que ler os jornais, buscar informações.

- Mas como ter certeza que as informações são verdadeiras?

- Tem que ter fontes confiáveis.

- O que determinar se uma fonte é confiável?

- Escute, te garanto que o Jornal "BizuBizu" e a Revista "Tralálá" são confiáveis.

- Mas estes só falam bem do seu candidato! - Provocou, Marca-passo.

- Por isso que elas são confiáveis! - Respondeu o interlocutor, irritado, e desceu do ônibus resmungando sobre a ignorância do amigo.

Marca-passo desceu no ponto seguinte, andou sem contar seus passos - o motivo de seu apelido - e não lhe saiam da cabeça as inúmeras variáveis que deveriam ser consideradas para responder as perguntas que ele fizera ao interlocutor. 

Depois de muito pensar, e depois de um tropeço na guia e de um quase atropelamento, concluiu que tinha em suas mãos uma pergunta cuja resposta era infinita. Por mais variáveis que pudesse coletar para julgar a confiabilidade de uma fonte, por mais fontes "confiáveis" que tivesse para obter informações, por mais informações "verdadeiras" que obtivesse para conhecer alguém, por mais "conhecimento" que tivesse para uma "boa escolha", uma única evidência contrária poderia tornar o seu voto um voto "irresponsável"!

Em sua obsessão descobriu que parametrizar o que é errado é mais fácil do que parametrizar o que é certo... Se questionou: o mesmo grau de dificuldade para dizer o que é certo deveria existir para dizer o que é errado, pois isso seria esperado de coisas que são opostas, como a claridade e a escuridão, como o que é grande e que é pequeno, como para frente e para atrás, como sim e não... Porque diabos o certo e o errado não são opostos perfeitos?

Pensou no seu interlocutor do ônibus, um cara que votaria no Beltrano - o candidato do partido dos XYZs, o qual representava os interesses dos Fulanos. Descobriu que só discordava do interlocutor do ônibus pelo mesmo motivo que este discordava dele, e que este motivo era, na verdade, a única variável que não poderia ser considerada na inglória tarefa de dizer o que é ou não é um voto consciente: o fato de o voto ser para um candidato que não era o dele.

Pensou, pensou...

Voltou a contar os passos.

sábado, 26 de julho de 2014

Laluf ou Malula?

Kassab foi considerado o segundo pior prefeito de São Paulo (enquete realizada no final de seu mandato, em 2012). O pior foi o Pitta, mas Pitta está morto, o que faz de Kassab o pior ex prefeito vivo de São Paulo. Pitta teve Maluf como padrinho, e Kassab fora Secretário do Planejamento de Pitta - aliás, de Maluf, por tabela.

Kassab depois foi vice de Serra, assumindo como prefeito após Serra sair candidato para o Governo do Estado. Serra ganhou, Kassab se reelegeu prefeito, depois. Até então, o inexpressivo Kassab já contava com dois padrinhos de peso: Maluf e Serra. De quem mais gostaria de ser afilhado? Ah sim, ainda faltava...

No início de 2011, o apadrinhado Kassab reunia-se de portas fechadas com Dilma em Brasília, e tal reunião nem ao menos constava das agendas oficiais da prefeitura ou da presidência da república - o que se desenhava ali?

Rapidamente, mesmo envolto em denúncias de assinaturas falsas junto aos cartórios eleitorais, o partido do Kassab foi lançado e, no ano seguinte, já ganhava secretarias com status de ministério especialmente criadas por Dilma como moeda de troca... Troca? Sim! É que numa única cartada, o pior ex prefeito vivo - muito vivo - de São Paulo, reconfigurou a base governista em favor do PT.

Eis que, do fundo das trevas, ressuscita um que nunca morreu, o Maluf.

A foto, de causar náuseas mesmo no mais entusiasta dos petistas, mostrava Maluf e Lula, juntos, pedindo voto para o menino Haddad. Lula havia sido ferrenho opositor de Pitta - lembra do Pitta? - e muito mais opositor do próprio Maluf. Aliás, Lula agora tem tantos aliados inusitados que, na verdade, tornou-se opositor de si mesmo - um paradoxo temporal dos filmes de ficção científica.

Bom, mas o menino Haddad se elegeu, assumindo a prefeitura de São Paulo em 2013. O ensaboado - não o Lula, o Kassab - deixou uma prefeitura quebrada para menino se virar. O menino não pôde reclamar, e teve que aguentar a bomba do movimento passe livre que estourou em suas mãos, já que o antecessor havia postergado o aumento da tarifa desde 2012.

O ensaboado Kassab é pré-candidato ao senado por SP, para as eleições de 2014. Pelo novo apadrinhamento, Kassab tem maior chance de tirar votos do tucano Serra, do que do petista Suplicy, outros dois pré-candidatos ao senado.

Foram grandes cartadas que, sabemos, não ocorreram da noite para o dia.

Me pergunto, quem mais ganhou com tudo isso ? Difícil dizer em se tratando de velhas raposas e seus "prepostos". Mas dá para dizer que cada um saiu com seu quinhão: Kassab, com prestígio político amplificado muitas vezes; Lula, com o enfraquecimento do tucanado paulista; e Maluf, aos 82 anos de idade e fortunas desconhecidas, acusado dentro e fora do Brasil por "N" maracutaias, com a garantia de que não verá o "sol nascer quadrado". Grande Malulada ou Lalufada!! Afunda, Brasil !

sábado, 1 de março de 2014

Um samba sustentável para os europeus (Artigo publicado no Estadão Noite - 28/02/2014)

Esta semana a Amazônia desfilou pelo sambódromo da economia mundial. Desta vez foi representada pela Zona Franca de Manaus, cujo regime tributário diferenciado foi objeto de consulta realizada pela União Europeia a Organização Mundial do Comércio. A estratégia da Presidente Dilma foi de apelar para o enredo do Desenvolvimento Sustentável na sua resposta, com repiques de estranheza acerca da consulta. Poderia ter sido uma estratégia até que inteligente, afinal, o mercado formado pelo bloco da União Europeia é, reconhecidamente, o que mais preza por valores de sustentabilidade.

Mas parece que a letra desse samba ficou um pouco confusa no vocal da Dilma.

Num discurso, a Zona Franca de Manaus foi apresentada pela Presidente como responsável pelo "Desenvolvimento Sustentável" do Brasil e, na medida em que cria empregos e movimenta a economia da região, "contribui para evitar o desmatamento da Floresta Amazônica". O samba ganhou também o vocal do Senador Eduardo Braga do PMDB do Amazonas, que passou a enumerar os 115 mil empregos diretos e outros 400 mil indiretos proporcionados pelas 600 empresas no polo de Manaus. 

A Zona Franca tem, de fato, um importante papel na economia da região, com reflexos no Brasil, mas o que tem a ver com o tal do desenvolvimento sustentável? O fato de o Estado do Amazonas apresentar, historicamente, menores taxas de desmatamento que outros estados amazônicos, como o Pará, está muito mais relacionado a uma “proteção passiva” do que à existência da Zona Franca. 

A proteção passiva das florestas da porção oeste da Região Amazônica é representada pela dificuldade de acesso e escoamento da produção, o que encarece e desmotiva o estabelecimento de atividades agropecuárias – tradicionalmente relacionadas ao desmatamento. 

Além disso, poucas estradas significa menor especulação de terras, o que é diferente do ocorrido no Pará com a chegada da Belém-Brasília, com a abertura da Transamazônica e, mais recentemente, com a BR-163. Portanto, a grande ironia, neste caso, é que o Estado do Amazonas foi preservado como reflexo das próprias omissões estatais: aquela estrada prometida pelo governo tal, mas que não saiu do superfaturado canteiro de obras!

Outro ponto que chama atenção no samba da Dilma é o absoluto conflito exposto em sua afirmação perante a União Europeia. Na medida em que o regime tributário diferenciado aplicado na Zona Franca foi defendido como responsável pela geração de emprego e renda, e que tal geração tornaria desnecessário desmatar, o governo admite, no mínimo, que o desmatamento ocorre por falta de emprego e renda. De outra forma, significaria dizer que, fora da Zona Franca, os péssimos índices da economia brasileira obrigam as pessoas a desmatarem para sobreviver. Não é verdade, a relação é exatamente inversa: o desmatamento aumenta em períodos de aquecimento da economia, e também porque é preciso de dinheiro mesmo que para “apenas” desmatar. Outro verso deste samba, neste caso presente em suas entrelinhas, é a admissão, por parte do governo federal, de que a carga tributária brasileira é o principal entrave para criação de emprego e renda, e que o desmatamento é a forma de compensar o que o Estado arranca do contribuinte da floresta amazônica.

No final de tudo, o samba da Dilma disse muitas coisas, menos o que queria, ou deveria, dizer. Mas quem sabe o corpo de jurados da União Europeia, quando da avaliação do samba-enredo do governo brasileiro, não dê uma boa nota: nota 10 para o quesito “samba do crioulo doido”.

Kemel Kalif

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Lavando as mãos sem água (Texto publicado no Estadão Noite em 13.02.2014)


As administrações públicas no Brasil tratam a reciclagem de lixo, a economia de energia, o desperdício de água, como parâmetros incontestes do quão sustentável o cidadão é, ou deveria ser. Obviamente, são assuntos que fazem parte do grande complexo teórico sobre o qual a noção de sustentabilidade se assenta, mas as campanhas públicas de conscientização parecem ser construídas mais para culpar a população e desviar o foco das omissões governamentais, do que conscientizar, de fato.


A questão do momento se divide entre o racionamento de água e os apagões. O calor e a seca têm deixado o nível de água das hidrelétricas abaixo de 40% no Sudeste do país, e os reservatórios que abastecem as cidades têm atingido níveis críticos. No estado de São Paulo, por exemplo, o Sistema Cantareira – que fornece água para mais de 8 milhões de pessoas – está abaixo de 19% de sua capacidade.



Entram em cena então as campanhas baseadas no princípio do "faça a sua parte". A população compra o argumento e, quase que em tempo real, a Dona Fulana que lavava a calçada com a mangueira é flagrada por um celular, vai parar nas redes sociais, torna-se o viral exemplo da ignorância, a causa de todos os males...



Tanto o alvo quanto a abordagem dessas campanhas estão equivocados. Claro que Dona Fulana tem que economizar, mas o consumo doméstico é responsável por menos de 15% do uso da água ofertada no estado de São Paulo (segundo dados da FAO). O que falta, na verdade, é uma abordagem sistêmica e precautória no lugar de pontual, emergencial e acusatória. 



As relações climáticas entre regiões do Brasil, como em qualquer outro lugar do mundo, ultrapassam os limites estaduais, políticos ou administrativos. O papel da Região Amazônica na manutenção das chuvas no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, por exemplo, é objeto da teoria que ficou conhecida como "Rios Voadores". Estima-se que os processos de evapotranspiração ocorridos na floresta gerem vapores com volume de água semelhante ao da vazão do Rio Amazonas. Estes vapores seriam levados pelos ventos no sentido leste-oeste, desviados pelos Andes no sentido norte-sul, precipitando nas regiões central e sul do Brasil.



Muito embora os modelos climáticos se dividam ao confirmar ou refutar a existência deste fenômeno, legislações baseadas nas relações de causa e efeito com impactos interestaduais, basicamente, inexistem na política ambiental brasileira. Conhecer tais relações e regular atividades que potencialmente lhes sejam deletérias é, talvez, a vertente mais estratégica de uma política ambiental, pois está intimamente ligada ao desenvolvimento econômico e ao bem estar social. Neste caso, dada a incerteza científica, deveria prevalecer o “Princípio da Precaução”, aquele que prevê "a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados" (Princípio 15 da Declaração do Rio/92).



Não tem sido o caso. Em 2013, a taxa de desmatamento na Amazônia aumentou em relação aos anos anteriores, e o papel do governo federal para este aumento não pode ser descartado. Aliás, a anistia concedida pelo Governo Federal aos desmatadores, indicando que o desmatamento ilegal vale a pena, e também as obras federais em infraestrutura na Amazônia, têm sido apontadas como motivadores deste aumento.



Mas enquanto a ciência busca padrões, os governantes têm a resposta: é a natureza, é o divino que castiga a pequeneza humana! Não bastassem as adversidades naturais, tem ainda gente como a Dona Fulana, uma egoísta, insustentável, não merecedora da vida em sociedade.



Perfeito, tudo explicado. Enquanto São Pedro não lava São Paulo, Dona Fulana lava a calçada e os governantes lavam as mãos.

Texto: Kemel Kalif

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Um cardiologista para a metrópole, um psiquiatra para a nação, e um engove para 2015.

Com congestionamentos que bloqueiam as artérias, nós,  as hemácias que movimentam São Paulo, temos o ritmo de trabalho limitado. A gordura de carros entope as vias, o fluxo de capital reduz, o coração financeiro reclama.  As hemácias não têm escolha, seguem fazendo seu trabalho. A via para, chama motobói, vai pela calçada,  xinga, cai, levanta, anda, morre, morre outro... Hemácias discutem no trânsito, caminhão fechou o carro, satisfações? Nada !  Facas e porretes, outra morte, apenas mais uma... Atraso, atraso, o oxigênio não chega, falência de órgãos. O coração financeiro reclama, mas não para.

Todos querem açúcar,  sal e gordura. O cérebro, lá de Brasília, prega peças no corpo e ordena - carros, carros, carros - e as vitrines anunciam, gordura com IPI reduzido. A economia tem que aquecer, e aquecimento é papel da gordura, carros na via, obstrução. O sal das obrigações,  horário, contas... Sobe a tensão, mais hemácias prostradas no chão.

A saúde vai mal. As metrópoles não podem se assustar, correr, ou qualquer outra coisa cujo efeito lhes acelere o coração. As contas publicas do Brasil, os equívocos de seu cérebro autodestrutivo, suicida, o que faz com seu corpo, a eterna angina instável,  a eterna fragilidade econômica... De fora, outro cérebro,  o Banco Central Americano, muda as regras do jogo. Os enfermos reclamam, mas cérebros deveriam cuidar de seus próprios corações para evitar, exatamente,  a convalescença.

Deixa pra lá, o ego fala mais alto. É ano eleitoral e o corpo vai ter que aguentar. Satisfazer o maior número de hemácias para garantir a reeleição é a prioridade do cérebro. Tome gordura, sal e açúcar. Não importa o metabolismo enfraquecido, não importa a obesidade mórbida do Estado Brasileiro. Queimação é intriga da oposição! Toma um antiácido, nada grave, passa logo. Pressão alta ? Mentira, é coisa de cara de pau! Tá com fome, faltou comida?  A gente importa. Tá fraco, faltou energia,  a gente liga as termoelétricas.  Tá triste,  desacreditado?  Ora, balela ! Tem país pior, viva seu dia, relaxa e goza... Ressaca mesmo, peso na consciência mesmo... é só em 2015.