quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Lavando as mãos sem água (Texto publicado no Estadão Noite em 13.02.2014)


As administrações públicas no Brasil tratam a reciclagem de lixo, a economia de energia, o desperdício de água, como parâmetros incontestes do quão sustentável o cidadão é, ou deveria ser. Obviamente, são assuntos que fazem parte do grande complexo teórico sobre o qual a noção de sustentabilidade se assenta, mas as campanhas públicas de conscientização parecem ser construídas mais para culpar a população e desviar o foco das omissões governamentais, do que conscientizar, de fato.


A questão do momento se divide entre o racionamento de água e os apagões. O calor e a seca têm deixado o nível de água das hidrelétricas abaixo de 40% no Sudeste do país, e os reservatórios que abastecem as cidades têm atingido níveis críticos. No estado de São Paulo, por exemplo, o Sistema Cantareira – que fornece água para mais de 8 milhões de pessoas – está abaixo de 19% de sua capacidade.



Entram em cena então as campanhas baseadas no princípio do "faça a sua parte". A população compra o argumento e, quase que em tempo real, a Dona Fulana que lavava a calçada com a mangueira é flagrada por um celular, vai parar nas redes sociais, torna-se o viral exemplo da ignorância, a causa de todos os males...



Tanto o alvo quanto a abordagem dessas campanhas estão equivocados. Claro que Dona Fulana tem que economizar, mas o consumo doméstico é responsável por menos de 15% do uso da água ofertada no estado de São Paulo (segundo dados da FAO). O que falta, na verdade, é uma abordagem sistêmica e precautória no lugar de pontual, emergencial e acusatória. 



As relações climáticas entre regiões do Brasil, como em qualquer outro lugar do mundo, ultrapassam os limites estaduais, políticos ou administrativos. O papel da Região Amazônica na manutenção das chuvas no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, por exemplo, é objeto da teoria que ficou conhecida como "Rios Voadores". Estima-se que os processos de evapotranspiração ocorridos na floresta gerem vapores com volume de água semelhante ao da vazão do Rio Amazonas. Estes vapores seriam levados pelos ventos no sentido leste-oeste, desviados pelos Andes no sentido norte-sul, precipitando nas regiões central e sul do Brasil.



Muito embora os modelos climáticos se dividam ao confirmar ou refutar a existência deste fenômeno, legislações baseadas nas relações de causa e efeito com impactos interestaduais, basicamente, inexistem na política ambiental brasileira. Conhecer tais relações e regular atividades que potencialmente lhes sejam deletérias é, talvez, a vertente mais estratégica de uma política ambiental, pois está intimamente ligada ao desenvolvimento econômico e ao bem estar social. Neste caso, dada a incerteza científica, deveria prevalecer o “Princípio da Precaução”, aquele que prevê "a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados" (Princípio 15 da Declaração do Rio/92).



Não tem sido o caso. Em 2013, a taxa de desmatamento na Amazônia aumentou em relação aos anos anteriores, e o papel do governo federal para este aumento não pode ser descartado. Aliás, a anistia concedida pelo Governo Federal aos desmatadores, indicando que o desmatamento ilegal vale a pena, e também as obras federais em infraestrutura na Amazônia, têm sido apontadas como motivadores deste aumento.



Mas enquanto a ciência busca padrões, os governantes têm a resposta: é a natureza, é o divino que castiga a pequeneza humana! Não bastassem as adversidades naturais, tem ainda gente como a Dona Fulana, uma egoísta, insustentável, não merecedora da vida em sociedade.



Perfeito, tudo explicado. Enquanto São Pedro não lava São Paulo, Dona Fulana lava a calçada e os governantes lavam as mãos.

Texto: Kemel Kalif

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